domingo, 7 de dezembro de 2008

Reconstruir: tarefa árdua.

Com todo desespero das famílias atingidas pelas últimas enchentes em Santa Catarina, deixo minha sensibilidade.

Outro dia, em um destes momentos onde o pensamento voa sem querer, andei reparando nas coisas que me cercam e percebi que cada uma encerra uma história...
A televisão preta foi o último presente que meu ex-marido me deu antes de sair de casa. Já a cinza, comprei com muito sacrifício e comemorei no dia que paguei a última prestação. O sofá, que já está gasto pelo tempo, mas que me relembra muitos momentos de alegria, de tristeza, de solidão... Testemunha silenciosa dos dias de minha vida. A casa de nossos pais, cada marca, arranhão representa uma historia silenciosa, como narradores ocultas de uma vida, demarcadas pelo tempo.
No guarda-roupa, muitas coisas, grandes, pequenas, minúsculos pedaços de minha história. Cada peça de roupa tem sua história própria, que me proporciona uma constante viagem no tempo e no espaço.
Os documentos guardados em uma pasta comprovam a minha passagem por esta vida, e as fotos do álbum a ilustram dando movimento as minhas lembranças. E nesta viagem pelas minhas coisas me encontro com a história da minha vida. Simplesmente me encontro...
De repente, o telejornal noticia sobre o terremoto na China e sobre as enchentes no Norte, Nordeste e o agora o Sul. As imagens mostram pessoas perdidas e desoladas no caos. Elas olham para tudo e não se encontram. Suas casas, suas coisas, seus parentes, seus conhecidos, e até mesmo os estranhos, se misturam em um amontoado difuso e incompreensível, os rostos se confundem no caos, não existindo mais nomes, apenas números e no meio da tragédia a mistura de sentimentos é inevitável, alívio e dor andando na mesma direção.
As lágrimas correm soltas e entre as vitimas o que se pode observar é uma sensação de profunda tristeza e desespero. As casas que eram seus lares foram arrancadas pela chuva, sendo obrigados a deixar toda a sua vida, suas lembranças e seus objetos pessoais pra trás. Levadas por um sentimento de desolação, que se explica pela maneira cruel e qual seus pertences foram destruídos, as vitimas parecem não acreditar no que seus olhos enxergam.
É um mundo virado pelo avesso, um mundo de exceção. Vejo pela TV a desolação das pessoas, e me pergunto que elas estão sentido neste momento. As famílias atingidas pela devastação não perderam seus objetos apenas, perderam uma parte de sua história. Então, transportamos para aquele mundo de caos para tentar entender. E nada. O que nos invade é o desespero do momento, e a apatia da falta de perspectiva futura. É como se todos os mecanismos para enfrentar dificuldades que aprendemos ao longo da vida não servissem para nada.
Estes sentimentos, certamente permeiam as vítimas de grandes tragédias, pois a história de suas vidas virou escombros, foi levada pelas águas, foi soterrada por toneladas de terra, ou despedaça por alguma bomba... É como se o todo de sua vida ficasse em pedaços...
A historia de uma pessoa não está apenas relacionada a um acontecimento, a um fato, ela é construída e reconstruída todo tempo. Como juntar estes pedaços? Como recomeçar? Por onde recomeçar? E aí, surge o desejo natural de que nada disto tivesse acontecido. A vontade de voltar no tempo e apagar este momento de nossa história. O que não é possível, a vida continua, e nossa história também, pois o mundo não para, ele continua acontecendo sem tempo pra perder... esquecendo de suas vitimas... O mundo continua a girar e só cabe a nós continuar contornando esta situação e voltar a grande roda gigante da vida.
E aí, podemos perceber que o ser humano vive essencialmente em um movimento de superação. Estamos sempre ao longo de nossa história, tentando superar catástrofes e guerras que viram nosso mundo pelo avesso. Estamos sempre tentando por ordem no caos, e quando achamos que conseguimos, ele se faz presente, nos exigindo buscar meios de superação.
O grande desafio enfrentado pelas famílias que passam por esta situação é resgatar não apenas os seus bens materiais, posses ou objetos, mas sim a sua base, sua referência, tudo aquilo que representa sua identidade perante a um grupo, um bairro, uma classe, uma cidade, uma nação. Ou seja, tudo aquilo que lhes permitam responder a uma questão: “Quem eu sou”.
Muito mais que a perda causada por tragédias, há outro aspecto doloroso: a substituição dos significados e referências de vida e cidadania pelas lembranças de dor, lamento e tristeza, marcadas pela diminuição da perspectiva futura e aumento do sentimento de derrota. Isto é o que fica depois das tragédias naturais, mas é algo que pode ser passageiro, superado pela simples vontade de recuperar tudo o que se foi. Muito mais que a recuperação da casa, do alimento, da roupa, esse sentimento significa a retomada de uma nova história e da identidade de pessoas e famílias que buscam voltar a ser cidadãos de verdade.


By Ivana Araújo